Acólito (do grego antigo ἀκόλουϑος) é um membro da Igreja Católica instituído para auxiliar o diácono e o sacerdote nas ações litúrgicas, sobretudo na celebração da missa. É sua função, também, cuidar do altar e,distribuir a sagrada Comunhão.
Acólito o ministro do Altar
sexta-feira, 31 de agosto de 2012
terça-feira, 28 de agosto de 2012
Santo Padre
“Vão contar aos demais jovens a sua alegria de ter encontrado aquele tesouro precioso que é Jesus. Não podemos conservar para nós a alegria da fé; para que esta possa permanecer em nós, temos que transmiti-la”. Papa Bento XVI
domingo, 26 de agosto de 2012
O pensamento litúrgico do Cardeal Ratzinger e a crise na liturgia
A liturgia e a Palavra de Deus, segundo a Exortação Apostólica Verbum Domini
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O pensamento litúrgico do Cardeal Ratzinger e a crise na liturgia
Ainda quando era Cardeal, o Santo Padre Bento XVI tinha como uma de suas fundamentais preocupações a questão da liturgia. Eleito para o trono de São Pedro, colocou o tema como um dos eixos principais de seu programa de renovação espiritual da Igreja.
De fato, sem a liturgia não há Igreja. É nela que a Igreja ora ao Senhor. Melhor dizendo, é nela que o próprio Cristo ora ao Pai (pelo Ofício Divino), se oferece ao Pai em sacrifício (pela Missa), e comunica aos fiéis o que conquistou diante do Pai (pelos sacramentos). A liturgia é o cerne da Igreja, e o meio pelo qual a Igreja cumpre sua função de salvar as almas.
Ademais, se, pelo Batismo, estamos incorporados a Cristo, a liturgia se torna não só a ação de Cristo, mas nossa unida a Cristo, ou seja, da Igreja toda, Corpo Místico de Cristo. Pio XII, na célebre Mediator Dei, definia a liturgia justamente como “o culto público integral do místico Corpo de Jesus Cristo, isto é, da cabeça e dos seus membros.”
Por essa razão, soa quase como natural a firme atenção de todos os Soberanos Pontífices na defesa das normas que regem o culto, evitando toda imprecisão e falta de zelo em sua celebração, e na incrementação da vida espiritual de clérigos e leigos mediante uma actuosa participatio na liturgia, tal qual foi, aliás, pedido pelo Concílio Vaticano II.
Se tal cuidado foi uma constante em quase todos os pontificados, notadamente os do início do séc. XX, com o chamado “movimento litúrgico” – iniciado por D. Gueranger, OSB, em sua luta contra o galicanismo que pretendia, também no terreno da liturgia, fazer escapar a Igreja das Gálias da autêntica submissão ao papado –, redobrou-se o alerta de Roma sobre o tema a partir das incompreensões advindas de uma má implementação da reforma litúrgica pós-conciliar. Não nos embrenharemos, no presente artigo, pois fugiria ao nosso escopo, discutir a própria reforma de Paulo VI, sua legitimidade ou pontos positivos e negativos. Sem embargo, cumpre notar que, a despeito de qualquer excelente intenção dos reformadores, e mesmo das claras rubricas do Missal Romano adotado, em 1969, pela virtual totalidade da Igreja latina, é notório o caos litúrgico que se instaurou desde então.
É evidente que os experimentos espúrios já vinham desde antes, mas com a crise da autoridade que tomou corpo na sociedade civil desde a revolução sorbonniana de 1968 (“é proibido proibir”), eles se avolumaram dos anos 70 para cá. Paulo VI mesmo confessava sentir que a “fumaça de Satanás entrou no templo de Deus” (Discurso em 29 de junho de 1972), o que, mais tarde, seria explicado pelo Cardeal Noé como uma apreensão diante de tantas manipulações em relação à Missa, tantas desobediências às rubricas, tantos desvios e antropocentrismos, a ponto de certos críticos católicos americanos falarem em “narcisismo clerical”: a liturgia, de serviço do povo a Deus, de culto público da Igreja, havia se transformado, na prática, em espetáculo pessoal na qual cada celebrante põe em andamento uma série de criatividades que considera “pastoralmente melhor”.
Esse o cenário com que se depararam, principalmente, João Paulo II e Bento XVI. O primeiro chegou a demonstrar, por sua grandiosa Encíclica Ecclesia de Eucharistia, que, ao lado de grandes luzes a partir da reforma litúrgica, havia também sombras. Em seu pontificado, para clarear as tais sombras, veio à lume não só uma melhor edição do Missale Romanum, como uma dezena de instruções para melhor aplicar as diretrizes litúrgicas, em que se destaca a direta Redemptionis Sacramentum.
Tal documento, ademais, é de responsabilidade do então Cardeal Ratzinger que, como acenamos, reiteradas vezes evidenciou a centralidade do tema da liturgia em sua monumental obra teológica.
Seu “Introdução ao espírito da liturgia” deixava já bem claras suas intenções como teólogo: era preciso resgatar, como diria mais tarde Mons. Nicola Bux, autor de “La reforma de Benedicto XVI”, os “direitos de Deus” na celebração. A liturgia não é um emaranhado de normas simplesmente positivas feitas por homens, não é um ordenamento puramente racional para que se tenha decência no culto. Mais do que isso, a liturgia é um culto disposto pelo próprio Deus, ainda que muitos de seus detalhes se dêem pela autoridade da Igreja e não diretamente por Revelação. É Cristo mesmo quem celebra a liturgia por meio da Igreja. Nessa seara, pois, todo cuidado é pouco, e toda reverência nunca é demais. Por bem menos do que os atuais abusos litúrgicos, Deus fulminou quem meramente tocava na arca da aliança, simples símbolo de Sua presença, e sombra do grande bem futuro que é a liturgia cristã...
O Magistério do Papa Bento XVI nos temas litúrgicos
Elevado à Sé Romana, o Cardeal Ratzinger assume o nome de Bento, em honra do grande patriarca do monaquismo ocidental, que evangelizou a hoje dessacralizada Europa exatamente pelo amor à celebração litúrgica, a tal ponto em que falar de Ordem beneditina importa em mencionar o canto litúrgico por excelência no rito romano, o canto gregoriano. Assim, Na Missa Pro Ecclesia, encerramento do Conclave que o elegeu, Bento XVI ordenou que essa comemoração fosse marcada “pela solenidade e retidão das celebrações.” Noutras palavras: rigoroso seguimento das rubricas do Missal; cessação de qualquer invencionice por parte dos sacerdotes; decoro e circunspeção; paramentos corretos; proibição de cantos estranhos à tradição católica e de não menos estranhas palmas e demonstrações efusivas de alegria, nada apropriadas para quem assiste, na Missa, a renovação do sacrifício da Cruz. “Peço isso de modo especial aos sacerdotes.”
O Papa tinha suas razões. A casula foi quase abandonada; certos padres inserem numa ou noutra parte da Missa gestos, símbolos (cartazes, plantas, fantasias, fogo etc) e palavras que são criações suas (em total desacordo com as regras vigentes); o povo reza orações reservadas aos sacerdotes e até por eles, às vezes, é incentivado a proferi-las (o “Por Cristo, com Cristo...”, a oração da paz, v.g.); os fiéis são convidados a atos não previstos (fechar os olhos, erguer as mãos, direcioná-las ao altar no “Por Cristo”, abri-las “para receber a bênção”, e outras provas bizarras de inesgotável e anticatólica criatividade, já atacada pelo então Cardeal Ratzinger em seu “A fé em crise?”); nem sempre as músicas são apropriadas; o incenso é raro; e os ministros extraordinários – leigos – são usados na proclamação do Evangelho e, ordinariamente, na distribuição da Comunhão (contrariando a Ecclesiae de Mysterio). Exemplos de um claro desrespeito às normas litúrgicas.
Não poderia Bento XVI se quedar inerte. Todos os atos de seu pontificado apontam para uma renovação da liturgia, no que alguns têm chamado de “reforma da reforma”: mais do que decretos corrigindo isso ou aquilo, o Papa aposta em uma reeducação litúrgica, em uma melhor vivência do rico patrimônio da liturgia, que, se não pode ficar estático nos livros antigos, também não foi inaugurado pelo Concílio. É a hermenêutica da continuidade, em que não fazem mais sentido as expressões “pré” e “pós-conciliar”: a doutrina e a Igreja são as mesmas, e os documentos devem ser interpretados à luz de uma tradição ininterrupta, também no campo da liturgia.
É com esse pensamento que Bento XVI liberou universalmente a celebração do rito romano antigo da Missa, celebrado anterior à reforma de Paulo VI, tornando-o “forma extraordinária” do rito romano, em pé de igualdade e ao lado do rito reformado, agora “forma ordinária”. Na mente do Papa, ambos devem se enriquecer e favorecer à pax liturgica.
Também é da lavra do atual Papa gloriosamente reinante a Exortação Apostólica Pós-sinodalSacramentum Caritatis, sobre a Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja. Aliás, o tema da caridade é bastante presente nos documentos de Bento XVI: “Deus Caritas Est”, “Caritas in Veritate”, e, no caso em tela, “Sacramentum Caritatis”. Escolhendo o tema do amor, da caridade como central em seu Magistério, e unindo a preocupação litúrgica com ele, o Santo Padre parece querer mandar um recado claro: a liturgia, ação de Cristo por nós junto do Pai, mediante a Igreja, é manifestação da Sua caridade para com o mundo. Se não amasse o mundo, não teria se entregue por nós, como nos diz São João em seu Evangelho (cf. Jo 3,16).
Permito-me transcrever, enfim, trechos da monografia apresentada em 2010 pelo Sem. Gian Paulo Rangel Ruzzi, aluno do Seminário Interdiocesano Maria Mater Ecclesia, em Itapecerica da Serra, SP, tendo como orientador o Pe. Celso Nogueira, LC:
“A primeira medida foi tomada em outubro de 2007, quando o prefeito da Congregação para o Culto Divino, o Card. Arinze, escreveu para todas as conferências episcopais do mundo, em concordância com a Instrução do ano 2001 Liturgiam Authenticam, do Card. Estevez, que pedia uma revisão na tradução dos livros litúrgicos, ordenando a correção nas edições em vernáculo da expressão pro multis, muitas vezes traduzida como ‘por todos’.
A segunda ação parte da Congregação para o Clero. Em setembro de 2006 foi erigido o Instituto Bom Pastor, uma sociedade de vida apostólica que celebra a Missa exclusivamente na forma anterior ao Concílio. Depende ao mesmo tempo da Comissão Ecclesia Dei e da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica.
Em março de 2007 o Santo Padre deu a conhecer a Exortação Apostólica pós-Sinodal Sacramentum Caritatis. Nela, o Papa Bento XVI reitera o dever dos sacerdotes em obedecer as “normas litúrgicas na sua integridade, pois é precisamente este modo de celebrar que, há dois mil anos, garante a vida de fé de todos os crentes”. Indica também, na segunda parte do documento, critérios para a ars celebrandi. Recomenda o uso do latim em concelebrações internacionais e a recitação de ao menos algumas partes fixas do cânon neste idioma.
(...)
Ainda em 2007 o Papa promulgou o Moto Próprio Summorum Pontificum, dando liberdade a todo padre para celebrar a missa tridentina sem a prévia permissão do bispo, como era anteriormente acordado. O documento insiste que o missal de Pio V e o missal de Paulo VI são duas expressões de um único Rito Romano, a primeira em sua forma extraordinária e a segunda em sua forma ordinária.” (pp. 26-27)
Não nos espanta, portanto, que um documento que trate não de liturgia, mas da Palavra de Deus na Igreja, como a recente Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbum Domini, também seja ocasião para o Romano Pontífice oferecer profunda catequese sobre temas litúrgicos. Como de costume, o Papa nos brinda com densa reflexão sobre a liturgia, ligando-a ao assunto específico do documento.
A liturgia como um locus onde se encontra a Palavra divina
O Papa trata de, a partir do número 52 da citada Exortação Apostólica, especificar a liturgia como um local para encontrar a Palavra. Não apenas a Escritura, dado que não somos protestantes, a ponto de identificar, necessariamente, a Palavra de Deus com um livro em que ela também se exterioriza. A Palavra de Deus, para Bento XVI, é aqui tomada no sentido mais classicamente católico, como o Logosgrego, o Verbum latino. Cristo é a Palavra que se encarna, armando sua tenda entre nós, a partir da aceitação da Virgem.
Se a liturgia é a oração pública de Cristo ao Pai pela Igreja, o ato do Corpo Místico, do Cristo total, em nosso benefício, natural que entre ela e o próprio Cristo haja uma correlação imprescindível. Cristo Jesus é a Palavra. A liturgia é ação de Cristo. A liturgia é ação da Palavra. O Filho de Deus se encarna, o Verbo, a Palavra, assume nossa carne, reveste-se de nossa natureza humana, para justamente cultuar ao Pai na Cruz e reviver, de modo incruento, esse sacrifício da Missa, perpetuando seus efeitos pelos sacramentos e, de certa forma, no Ofício Divino. A Palavra de Deus, i.e., o próprio Cristo, é o autor e o ator da liturgia. A liturgia é a ação da Palavra encarnada. E, como tal, Cristo nos fala, como Verbo que é, na liturgia por Ele celebrada mediante seus sacerdotes.
Daí o ensino do Papa na Exortação:
“Considerando a Igreja como «casa da Palavra», deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia sagrada. Esta constitui, efetivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento presente da nossa vida: fala hoje ao seu povo, que escuta e responde.” (VD, 52)
Evidentemente, ainda que não se possa identificar a Palavra apenas com a Escritura, é forçoso dizer que esta é um meio concreto e visível de a conhecermos. Encontramos a Cristo no sacrário e no crucifixo, mas também no contato com os Evangelhos e todas as demais páginas da Bíblia Sagrada. Assim, continua o Papa, a “ação litúrgica está, por sua natureza, impregnada da Sagrada Escritura.” (VD, 52)
E não só na chamada “Missa dos Catecúmenos” ou “Liturgia da Palavra” se encontram disposições da Sagrada Escritura. Além das leituras – e um dos pontos positivos da reforma de Paulo VI foi justamente uma maior disposição das lições, com o acréscimo de uma perícope nos Domingos e solenidades (antigamente chamadas de “festas de primeira classe”) –, a Escritura está presente, em citações diretas, também na maioria das antífonas (Intróito, Ofertório e Comunhão), além de se fazer presente, quer na forma direta, quer como inspiração, nas preces, nas coletas, nas sequências, nos prefácios, e até em inúmeros trechos do Ordinário da Missa (como a Consagração, o Rito da Paz, o Pater Noster, oGloria, o Sanctus, o Agnus, as bênçãos solenes).
Isso sem falar na Liturgia das Horas, que bebe entusiasticamente das fontes escriturísticas, com seus salmos, leituras breves e longas, cânticos e também nos hinos que, embora não bíblicos, estão impregnados de uma linguagem lírica comum à Escritura e não raras vezes utilizam-se de expressões consagradas no texto sacro.
Outro elemento que daí se infere é quanto à interpretação da Revelação divina. A Palavra De Deus só pode ser lida pela Igreja e com a Igreja. Sendo a Igreja a depositária da Revelação, cujas fontes são a Tradição e a Escritura, e tendo também a Igreja nos dado a Bíblia – selecionando o que era ou não inspirado para colocar no cânon –, sendo, por isso, em certo sentido, “mãe da Bíblia”, natural que os textos sagrados só ganhem seu real sentido na própria Igreja. Santo Agostinho já dizia que só cria no Evangelho pela autoridade da Santa Igreja, e outros autores recolhem o adágio de que, fora da interpretação da Igreja, a Bíblia pode ser a mãe de todas as heresias.
Ora, se a Igreja que nos dá a Bíblia, que guarda o depósito da fé pela Palavra divina, é, como Corpo Místico de Cristo, a continuadora da ação do Senhor na história mediante a liturgia, e a mesma liturgia é um locus onde se encontra aquela Palavra, temos que a liturgia é o referencial para a autêntica leitura escriturística. Não é desconhecido, ademais, o adágio “lex orandi, lex credendi”, e sendo a leitura da Palavra de Deus uma forma de oração, com mais razão na liturgia, ela deve expressar o que cremos. De fato, assim se expressa o Papa:
“Por isso, para a compreensão da Palavra de Deus, é necessário entender e viver o valor essencial da acção litúrgica. Em certo sentido, a hermenêutica da fé relativamente à Sagrada Escritura deve ter sempre como ponto de referência a liturgia, onde a Palavra de Deus é celebrada como palavra actual e viva: «A Igreja, na liturgia, segue fielmente o modo de ler e interpretar as Sagradas Escrituras seguido pelo próprio Cristo, quando, a partir do “hoje” do seu evento, exorta a perscrutar todas as Escrituras».” (VD, 52, grifos nossos)
O próprio ano litúrgico, imprimindo um ritmo pelo qual se vai aos poucos se desenrolando o drama da Redenção nas perícopes selecionadas para cada tempo e festa, indica bem a liturgia como lugar da Palavra. E tudo aponta, em tal mencionado ritmo, para o acontecimento central de nossa Salvação.
Isso está bastante claro no mesmo número 52 do documento:
“Aqui se vê também a sábia pedagogia da Igreja que proclama e escuta a Sagrada Escritura seguindo o ritmo do ano litúrgico. Vemos a Palavra de Deus distribuída ao longo do tempo, particularmente na celebração eucarística e na Liturgia das Horas. No centro de tudo, refulge o Mistério Pascal, ao qual se unem todos os mistérios de Cristo e da história da salvação actualizados sacramentalmente: «Com esta recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar como que presentes a todo o tempo, para que os fiéis, em contacto com eles, se encham de graça». Por isso exorto os Pastores da Igreja e os agentes pastorais a fazer com que todos os fiéis sejam educados para saborear o sentido profundo da Palavra de Deus que está distribuída ao longo do ano na liturgia, mostrando os mistérios fundamentais da nossa fé. Também disto depende a correcta abordagem da Sagrada Escritura.” (VD, 52, grifos nossos)
Outros aspectos da relação entre a Escritura e as celebrações litúrgicas
Não podemos olvidar, ademais, segundo o Papa, “que a unidade íntima entre Palavra e Eucaristia está radicada no testemunho da Escritura (cf. Jo 6; L c 24)” (VD, 54).
Prossegue Sua Santidade:
“A este propósito, pensemos no grande discurso de Jesus sobre o pão da vida na sinagoga de Cafarnaum (cf. Jo 6, 22-69), que tem como pano de fundo o confronto entre Moisés e Jesus, entre aquele que falou face a face com Deus (cf. Ex 33, 11) e aquele que revelou Deus (cf. Jo 1, 18). De facto, o discurso sobre o pão evoca o dom de Deus que Moisés obteve para o seu povo com o maná no deserto, que na realidade é a Torah, a Palavra de Deus que faz viver (cf. Sl 119; Pr 9, 5). Em Si mesmo, Jesus torna realidade esta figura antiga: «O pão de Deus é o que desce do Céu e dá a vida ao mundo. (...) Eu sou o pão da vida» (Jo 6, 33.35). Aqui, «a Lei tornou-se Pessoa. Encontrando Jesus, alimentamo-nos por assim dizer do próprio Deus vivo, comemos verdadeiramente o pão do céu». No discurso de Cafarnaum, aprofunda-se o Prólogo de João: se neste o Logos de Deus Se faz carne, naquele a carne faz-Se «pão» dado para a vida do mundo (cf. Jo 6, 51), aludindo assim ao dom que Jesus fará de Si mesmo no mistério da cruz, confirmado pela afirmação acerca do seu sangue dado a «beber» (cf. Jo 6, 53). Assim, no mistério da Eucaristia, mostra-se qual é o verdadeiro maná, o verdadeiro pão do céu: é o Logos de Deus que Se fez carne, que Se entregou a Si mesmo por nós no Mistério Pascal.” (VD, 54)
O reconhecimento do mesmo Logos divino após Sua Ressurreição, pelos discípulos do Emaús, passa por uma demonstração desta relação entre a Palavra/Escritura e a Eucaristia. Os discípulos, diz-nos a própria Escritura – novamente ela –, reconhecem que aquele que lhes falava pelo caminho era o Cristo quando Ele parte o pão, em um símbolo da Eucaristia que instituíra na Quinta-feira Santa. Todavia, a partir desse momento sagrado em que reconhecem o Senhor, lembram-se de que, quando Ele lhes falava (e aqui temos, então, a Palavra, ainda que não-escrita, mas no mesmo nível da escrita, para o entender da Igreja), seus corações ardiam. A Palavra de Deus é que lhes prepara para o reconhecimento de Jesus no partir do pão. E Jesus, recordemos, utilizou, durante todo o caminho com os discípulos, até chegar a Emaús, de trechos da Escritura, para mostrar, pelos profetas e pela lei, como deveria sofrer, morrer e ressuscitar pela salvação dos pecados. A Escritura, então, não só prepara o encontro com o Senhor, mas o justifica. A Palavra – em um tríplice aspecto (o próprio Senhor é a Palavra, suas palavras faladas no caminho, e sua palavra escrita nos profetas e na lei explicando os eventos da salvação) – aponta para a Eucaristia no partir do pão, e a Eucaristia se torna plenamente reconhecível pela Palavra. Há aqui um aspecto teológico profundo até mesmo para a tarefa da apologética com os protestantes, e penso que, em outra oportunidade, deveria ser melhor explorado.
O Santo Padre já adianta a abordagem sobre a relação entre a Palavra e a Eucaristia a partir de Emaús, no ponto seguinte da Exortação:
“Vê-se a partir destas narrações como a própria Escritura leva a descobrir o seu nexo indissolúvel com a Eucaristia. «Por conseguinte, deve-se ter sempre presente que a Palavra de Deus, lida e proclamada na liturgia pela Igreja, conduz, como se de alguma forma se tratasse da sua própria finalidade, ao sacrifício da aliança e ao banquete da graça, ou seja, à Eucaristia». Palavra e Eucaristia correspondem-se tão intimamente que não podem ser compreendidas uma sem a outra: a Palavra de Deus faz-Se carne, sacramentalmente, no evento eucarístico. A Eucaristia abre-nos à inteligência da Sagrada Escritura, como esta, por sua vez, ilumina e explica o Mistério eucarístico. Com efeito, sem o reconhecimento da presença real do Senhor na Eucaristia, permanece incompleta a compreensão da Escritura. Por isso, «à palavra de Deus e ao mistério eucarístico a Igreja tributou e quis e estabeleceu que, sempre e em todo o lugar, se tributasse a mesma veneração embora não o mesmo culto. Movida pelo exemplo do seu fundador, nunca cessou de celebrar o mistério pascal, reunindo-se num mesmo lugar para ler, “em todas as Escrituras, aquilo que Lhe dizia respeito” (L c 24, 27) e actualizar, com o memorial do Senhor e os sacramentos, a obra da salvação».” (VD, 55)
Um ponto “difícil”: a sacramentalidade da Palavra
Segundo os teólogos, a palavra sacramento teve vários significados no início do cristianismo, e podemos resumi-los a três principais:
a) o sentido original e profano de um juramento usado pelos militares romanos;
b) o sentido religioso amplo, designando qualquer coisa que fosse sagrada, ou seja, retirada para uso espiritual;
c) o sentido religioso estrito, importando em um sinal sensível e visível da graça invisível, instituído por Cristo, e por meio do qual a graça operaria eficazmente em nós.
Embora os manuais de dogma, os catecismos e o nosso uso corriqueiro ordinariamente utilizem essa palavra apenas para o sentido estrito, não era estranha à Igreja, ao menos até o Concílio de Trento, a presença do vocábulo “sacramento” no segundo sentido, amplo, lato. Era algo relativamente comum, por exemplo, entre os Padres gregos, ao denominar a árvore da vida do Paraíso, os ícones, as bênçãos, os paramentos, as velas, e até as coroações de reis e imperadores, de sacramentos. Com isso, não se estava, evidentemente, aumentando a lista dos sacramentos além dos sete dogmaticamente reconhecidos. Sabia-se perfeitamente que uns eram os sacramentos como canais da graça, e estes eram apenas sete, como sempre foram e sempre serão; e outros eram simplesmente coisas sagradas a que se aplicava a palavra "sacramento" em um sentido amplo.
Justamente para evitar confusões é que a contra-reforma católica, combatendo os erros protestantes, passou a ressaltar apenas o sentido estrito.
Todavia, o Vaticano II passou a utilizar, novamente, já que quis usar uma linguagem mais agostiniana do que tomista, “sacramento” no sentido amplo. Daí a expressão, tão cara à Lumen Gentium: “Igreja, sacramento da salvação”. Não se está, como resta patente, criando ou reconhecendo um oitavo sacramento que seria a Igreja, até porque não há, na Igreja, uma “celebração”, um “rito”, “forma”, “matéria”... A Igreja não é uma ação ritual, e sim uma sociedade. A Igreja como sacramento não o é no sentido de que é sacramento o Batismo, ou a Crisma, ou a Ordem. Sacramento, para a Lumen Gentium, referindo-se à Igreja é um sinal, algo sagrado, e a Igreja é o “algo sagrado” por excelência, dado que dela ou por ela recebemos o necessário para nos salvarmos, inclusive os sete sacramentos em sentido estrito.
Retomando esse sentido amplo da palavra, Bento XVI, na Verbum Domini, indica a Palavra de Deus escrita e oral como sendo um sacramento. Vejamos, em suas linhas:
“Com o apelo ao carácter performativo da Palavra de Deus na acção sacramental e o aprofundamento da relação entre Palavra e Eucaristia, somos introduzidos num tema significativo, referido durante a Assembleia do Sínodo: a sacramentalidade da Palavra. A este respeito é útil recordar que o Papa João Paulo II já aludira «ao horizonte sacramental da Revelação e, de forma particular, ao sinal eucarístico, onde a união indivisível entre a realidade e o respectivo significado permite identificar a profundidade do mistério». Daqui se compreende que, na origem da sacramentalidade da Palavra de Deus, esteja precisamente o mistério da encarnação: «o Verbo fez-Se carne» (Jo 1, 14), a realidade do mistério revelado oferece-se a nós na «carne» do Filho. A Palavra de Deus torna-se perceptível à fé através do «sinal» de palavras e gestos humanos. A fé reconhece o Verbo de Deus, acolhendo os gestos e as palavras com que Ele mesmo se nos apresenta. Portanto, o horizonte sacramental da revelação indica a modalidade histórico-salvífica com que o Verbo de Deus entra no tempo e no espaço, tornando-Se interlocutor do homem, chamado a acolher na fé o seu dom.” (VD, 56)
Claro está que o Sumo Pontífice não ignora o dogma dos sete (e únicos) sacramentos, nem fere o entendimento da Igreja, apresentando a teologia da “sacramentalidade da Palavra”. A Palavra de Deus, ou mais especificamente, a Sagrada Escritura, não é um sacramento no sentido de uma celebração, de um sinal sensível e eficaz da graça, ou seja, não é sacramento no sentido estrito tomista, tridentino, dos catecismos, e que, claro, deve continuar a prevalecer como “sentido mais forte”, “sentido mais importante”, para que não haja confusão entre os fiéis. Sem embargo, a profunda sacralidade da Palavra não deve ser desprezada, e, além disso, insistindo-se na “sacramentalidade” da Palavra, demonstra-se com bastante eficácia a relação da Escritura com a Eucaristia, como em Emaús.
Noutros termos, os sete sacramentos, em sentido estrito, são revalorizados e diríamos provados pela Palavra como sacramento em sentido amplo. Ou a Palavra, sacramento em sentido amplo, aponta para os sete sacramentos, em sentido estrito. E, se aponta para os sete, com mais razão, para o sacramento do qual derivam os demais, o sacramento por antonomásia, o Santíssimo Sacramento, como se vê na continuação da Exortação Apostólica:
“Assim é possível compreender a sacramentalidade da Palavra através da analogia com a presença real de Cristo sob as espécies do pão e do vinho consagrados. Aproximando-nos do altar e participando no banquete eucarístico, comungamos realmente o corpo e o sangue de Cristo. A proclamação da Palavra de Deus na celebração comporta reconhecer que é o próprio Cristo que Se faz presente e Se dirige a nós para ser acolhido. Referindo-se à atitude que se deve adoptar tanto em relação à Eucaristia como à Palavra de Deus, São Jerónimo afirma: «Lemos as Sagradas Escrituras. Eu penso que o Evangelho é o Corpo de Cristo; penso que as santas Escrituras são o seu ensinamento. E quando Ele fala em “comer a minha carne e beber o meu sangue” (Jo 6, 53), embora estas palavras se possam entender do Mistério [eucarístico], todavia também a palavra da Escritura, o ensinamento de Deus, é verdadeiramente o corpo de Cristo e o seu sangue. Quando vamos receber o Mistério [eucarístico], se cair uma migalha sentimo-nos perdidos. E, quando estamos a escutar a Palavra de Deus e nos é derramada nos ouvidos a Palavra de Deus que é carne de Cristo e seu sangue, se nos distrairmos com outra coisa, não incorremos em grande perigo?». Realmente presente nas espécies do pão e do vinho, Cristo está presente, de modo análogo, também na Palavra proclamada na liturgia. Por isso, aprofundar o sentido da sacramentalidade da Palavra de Deus pode favorecer uma maior compreensão unitária do mistério da revelação em «acções e palavras intimamente relacionadas», sendo de proveito à vida espiritual dos fiéis e à acção pastoral da Igreja.” (VD, 56, grifo nosso)
Um novo mote a considerar. Há, evidentemente, uma indissociável relação entre a Sagrada Eucaristia e a Palavra de Deus, mas para reforçar tal nexo se vale a Igreja de analogias, dado que são "categorias" distintas. Mesmo a presença de Cristo na Escritura proclamada durante a celebração não é do mesmo nível de sua presença real no sacramento eucarístico. A presença de Cristo na Eucaristia é uma presença por antonomásia, por excelência.
Para ressaltar que, pela liturgia, existe uma presença de Cristo na Palavra proclamada, e que ela tem relação com a presença do mesmo Cristo no sacramento da Eucaristia celebrado, novamente, na idêntica liturgia, mas que, por outro lado, tais “presenças” são distintas, é que frisamos o vocábulo “análogo” no parágrafo supra. Cristo está na Palavra e está na Eucaristia, porém entre as duas presenças há uma analogia, significando que não são idênticas, não possuem a mesma substância.
Como já tivemos oportunidade de esclarecer, em outro artigo, publicado pelo conhecido site Veritatis Splendor – http://www.veritatis.com.br/article/3596, que passo a transcrever a título de aprofundamento, como um parêntesis em nosso estudo:
“Importa, antes de tudo, diferenciarmos os modos pelos quais Deus Se faz presente nas coisas, nos lugares e nos seres.
1) Presença de Cristo em todas as coisas, em todos os lugares, e em todos os seres, por Sua ubiqüidade ou onipresença, i.e., em virtude de seu poder.
2) Presença de Cristo em todos os homens, pecadores ou justos, pela ubiqüidade, mas também, e de modo mais especial, por amor e por semelhança.
3) Presença de Cristo nas almas dos justos, i.e., dos que estão em estado de graça ou já se encontram salvos, quer no céu quer no purgatório, pela inabitação, ou seja, mediante a graça santificante.
4) Presença de Cristo nas páginas das Sagradas Escrituras, nos ministros, em certos sacramentais, nas imagens, no altar, pelo uso que deles se faz.
5) Presença de Cristo na assembléia dos fiéis, pela graça, uma vez que é reunião de almas dos justos e, por isso, decorre da inabitação, presença essa que se chama, mui significativamente, espiritual.
6) Presença de Cristo na Santíssima Eucaristia pela realidade e pela substância, não como se nas outras Ele não estivesse real ou substancialmente presente, mas por antonomásia, de modo excelso.
Feitas essas diferenciações, por alto, passemos à consideração de cada uma dessas maneiras de Deus fazer-Se presente.
“‘Cristo Jesus, aquele que morreu, ou melhor, que ressuscitou, aquele que está à direita de Deus e que intercede por nós’ (Rm 8,34), está presente de múltiplas maneiras em sua Igreja: em sua Palavra, na oração de sua Igreja, ‘lá onde dois ou três estão reunidos em meu nome’ (Mt 18,20), nos pobres, nos doentes, nos presos, nos sacramentos, dos quais ele é o autor, no sacrifício da missa e na pessoa do ministro. Mas 'sobretudo (está presente) sob as espécies eucarísticas.’” (Cat., 1373)
Em todas as coisas, seres e lugares, faz-Se presente Deus, uma vez que um de Seus atributos é a imensidão ou ubiqüidade, também chamada onipresença.
Embora Deus esteja em sua Sua substância, nela não se convertem as substâncias das coisas onde Ele está presente em virtude de Seu poder. A substância de cada criatura permanece a mesma, não tendo ela substância divina, sob pena de cairmos no erro do panteísmo, que confunde o Criador com os seres criados.
No ser humano, mesmo pecador, Deus está presente também pela ubiqüidade. Em certo sentido, é a mesma presença divina com a qual o Senhor está em todas as coisas, lugares e seres. Em outro, é uma presença mais íntima, pois o homem é Sua imagem e semelhança. “Tu estavas comigo, mas não eu contigo.” (Santo Agostinho, Conf., X, 27, 38)Ainda assim, esta presença é inferior àquela efetuada por Deus mediante a graça. De fato, a presença de Deus no justo, chamada inabitação, é uma participação na vida divina, na natureza divina. Não muda o homem sua substância, mas participa, pela graça santificante, da de Deus.
“A pesar del pecado de los hombres, Dios siempre ha mantenido su presencia creacional en las criaturas. Sin ese contacto entitativo, ontológico, permanente, las criaturas hubieran recaído en la nada. León XIII, citando a Santo Tomás, recuerda esta clásica doctrina: «Dios se halla presente a todas las cosas, y está en ellas ‘por potencia, en cuanto se hallan sujetas a su potestad; por presencia, en cuanto todas están abiertas y patentes a sus ojos; por esencia, porque en todas ellas se halla él como causa del ser’» (enc. Divinum illud munus: STh I,8,3). Pero la Revelación nos descubre otro modo por el que Dios está presente a los hombres, la presencia de gracia, por la que establece con ellos una profunda amistad deificante. Toda la obra misericordiosa del Padre celestial, es decir, toda la obra de Jesucristo, se consuma en la comunicación del Espíritu Santo a los creyentes.” (RIVERA, Pe. José; IRABURU, Pe. José María. Síntesis de la Espiritualidad Católica, Fundación Gratis Date)
“Para melhor entender a natureza e efeitos desse dom, convém recordar o que, depois das Sagradas Escrituras, ensinaram os sagrados doutores, isto é, que Deus se acha presente em todas as coisas e que está nelas ‘por potência, enquanto se acham sujeitas a sua potestade; por presença, enquanto todas estão abertas e patentes a seus olhos; e por essência, porque em todas se acha como causa de seu ser.’ Mas, na criatura racional, encontra-se Deus já de outra maneira, isto é, enquanto é conhecido e amado, já que é segundo a natureza amar o bem, desejá-lo e buscá-lo. Finalmente, Deus, por meio de sua graça, está na alma do justo de forma mais íntima e inefável, como em seu templo; e disso se segue aquele mútuo amor pelo qual a alma está intimamente presente diante de Deus, e está nele mais do que se possa suceder entre os amigos mais queridos, e goza dele com a mais regalada doçura.
E esta admirável união (...) propriamente se chama inabitação (...).” (Sua Santidade, o Papa Leão XIII. Encíclica Divinum Illud Munus)
“Trabalhemos sempre vivendo conscientemente Sua inabitação em nós, sendo nós Seu templo, sendo Ele nosso Deus dentro de nós.” (Santo Inácio de Antioquia, Ad Eph., 15,3) A inabitação é formalmente uma união física e amistosa entre Deus e o homem, fundada na caridade e realizada pela graça, mediante a qual Deus Se dá à alma e nela Se torna presente pessoal e substancialmente, sem alteração da substância própria do homem, porém, fazendo-a participar da vida divina. “Deus mora secretamente no seio da alma”(São João da Cruz, Chama, 4, 14) Essa santificação ou divinização não é uma mudança da substância humana em divina, mas elevação da primeira à última. A grande reformadora do Carmelo sempre se referia às “(...) três Pessoas que trago na alma (...).”(Santa Teresa d'Ávila, Consc., 42)
Santo Tomás de Aquino explica: “O especial modo da presença divina própria da alma racional consiste precisamente em que Deus esteja com ela como o conhecido naquele que o conhece e o como o amado no amante. E porque, conhecendo e amando, a alma racional aplica sua operação ao mesmo Deus, por isso, segundo este modo especial, se diz que Deus não só é na criatura racional, senão que habita nela como em seu templo.”(S. Th., I, q. 43, a. 3)
Em virtude da Encarnação, Cristo é Deus, mas também homem, duas naturezas em uma só Pessoa. Evidentemente, quando nos referimos à onipresença, estamos falando de um atributo da divindade. Ainda que esta se una indissoluvelmente à humanidade de Cristo em Sua Encarnação, aquela é preexistente. Antes mesmo de tornar-se carne, o Verbo, por ser Deus, já estava em tudo e em todos (sem alterar-lhes, contudo, a substância, nem fazer-lhes participar de Sua natureza divina); na Eucaristia, porém, eis que é Cristo, Verbo feito carne, não só a divindade como a humanidade do Salvador estão presentes.
Deus não está presente na pedra ou na árvore de modo a fazê-las participar de Sua divindade. Cada ser conserva sua substância própria. A pedra é pedra, não Deus. Sua semelhança com o Criador se dá pela participação da perfeição divina enquanto tem, como Deus, o ser (no caso, o ser pedra). Assim também, o homem não é Deus por estar Este presente naquele; sua natureza humana, substância humana, resta inalterada. É o homem semelhante a Deus apenas na medida em que participa das faculdades da inteligência e da vontade, as quais são perfeições divinas. No homem, Deus está presente, pela ubiqüidade, sendo a ele semelhante, vez que é inteligente e possui vontade (Deus, que é puro espírito, também é inteligente e possui vontade).
No homem em estado de graça (e nos anjos do céu), Deus faz-Se presente de modo ainda mais excelso: pela participação na natureza divina. Ainda nesta, o homem continua homem (e o anjo, anjo), mas, pela graça, recebe algo da divindade, algo da substância divina, sem alterar a sua própria, contudo.
Nenhuma dessas presenças, entretanto, é a mesma de Deus na Eucaristia. Nela, Deus não está presente como em todos os lugares, seres e coisas. Nela, Deus não está presente apenas enquanto esta tem o ser. Nela, Deus não está presente pela participação na vontade e na inteligência, que caracterizam a semelhança. Nela, Deus não está presente pela graça ou elevando a substância, a natureza, até Si. Não! Se a pedra, ainda que Deus nela esteja presente, continua pedra, sem mudar a substância de pedra, sem assumir a natureza divina (daí que não adoramos a pedra nem a consideramos Deus, o que seria panteísmo); se o homem não-justificado continua homem, ainda que Deus nele esteja também presente e seja ele criado à Sua imagem e semelhança; se mesmo o homem em estado de graça continua homem, sem mudar sua substância, sua natureza humana (ainda que participando, pela graça santificante, da natureza divina); a Eucaristia é o próprio Deus! Não está Cristo nela como na pedra (que continua pedra) ou no homem (que continua homem, mesmo elevado pela graça à natureza divina), mas há verdadeira mudança de substância (transubstanciação): as substâncias do pão e do vinho, após a consagração e por ela, mudam-se em Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor, Deus, Rei e Salvador, Jesus Cristo. A pedra tem a presença de Deus, porém resta com a substância de pedra. O homem tem a presença de Deus, porém resta com a substância de homem. A Eucaristia tem a substância de Deus, pois nela Cristo não só está presente: a Eucaristia É Deus! Sob a aparência de pão, encontra-se o Criador do Universo! Daí que a adoremos, o que não se faz com uma pedra, ainda que Deus nela esteja presente pela ubiqüidade, nem com um homem, ainda que seja feito à Sua imagem e semelhança e, no caso do homem justificado, participe da natureza divina.
Cristo, pois faz-Se presente nas coisas, em virtude de sua onipresença; faz-Se presente nos homens pela grandiosa semelhança entre eles e Deus, criados à Sua imagem, com vontade e inteligência; faz-Se presente nas almas justas em razão da graça, presença essa chamada inabitação; faz-Se presente na Bíblia, nos ministros, nos sacramentais, pelo uso; e, muito especialmente, na Eucaristia. “Esta presença chama-se ‘real’ não por exclusão, como se as outras não fossem ‘reais’, mas por antonomásia”, diz Paulo VI, “porque é substancial e porque por ela Cristo, Deus e homem, se torna presente completo”. (Encíclica Mysterium Fidei, de 3 de setembro de 1965, nº 39) A Eucaristia não é apenas presença de Cristo: ela é o próprio Cristo! Ainda que estivesse em todos os lugares, uma vez que, sendo Deus, era onipresente, Cristo, em Sua vida terrena, após a Encarnação, estava, de modo especial, presente em locais específicos: em Cafarnaum, Nazaré, Jerusalém, na manjedoura, nas bodas de Caná, em um barco no mar da Galiléia... A presença de Jesus em um local específico e determinado não elimina Sua ubiqüidade, imensidão, onipresença. O mesmo em relação ao Santíssimo Sacramento: é Deus conosco, e Sua presença nele, específica, não invalida a ubiqüidade. De qualquer maneira, é uma presença excelente, real por antonomásia!
A presença de Jesus Cristo, outrossim, entre o povo fiel, é explicada de dois modos. Primeiro como conseqüência da inabitação: Cristo está presente, pela graça, nas almas de muitos. Segundo, pela promessa de estar presente no meio deles, como bem lembrou o consulente. É uma presença, ainda que real, que se dá de maneira espiritual. A substância do lugar não muda.”
Não se distorça, portanto, a Exortação do Papa para justificar espúrias teologias que tentam igualar a Escritura e a Eucaristia, reduzindo, na prática, a fé na presença real e substancial do Senhor no Santíssimo Sacramento.
Fecha parênteses. Sigamos o artigo.
Pontos práticos para a “reforma da reforma litúrgica” em relação à Palavra de Deus
Enfim, não se pode descurar toda a questão que falávamos no início deste artigo, sobre a “reforma da reforma” pretendida e iniciada por Bento XVI, e suas relações com o tema da presente Exortação Apostólica. E é nesse sentido que o próprio Papa já se adianta e, não querendo deixar somente para nossa criatividade e filosofia imaginar o cenário de como a Palavra de Deus se afina com o resgate de uma sacralidade mais “ostensiva” na liturgia, dá os caminhos por onde, com segurança, poderemos trilhar nos próximos anos, principalmente os envolvidos no “novo movimento litúrgico”, como nós, aqui em nosso blog.
O Papa já tinha, em 2006, em sua Mensagem para o Dia Mundial da Juventude, especificado a importância que dava à intimidade com a Escritura, tema da presente Exortação. O despertar para a liturgia, requerido por Bento XVI, passa por um contato mais estreito com a Palavra de Deus, que, como vimos, permeia não só a celebração litúrgica, como é a base da teologia que a sustenta.
Nesse diapasão, convém recordar as palavras do Pontífice àquela ocasião:
“Diletos jovens, exorto-vos a adquirir familiaridade com a Bíblia, a conservá-la ao alcance da mão, a fim de que seja para vós uma bússola que indique o caminho a seguir. Lendo-a, aprendereis a conhecer Cristo. A este propósito, São Jerônimo observa: "A ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo" (PL 24, 17; cf. Dei Verbum, 25). Um caminho bem experimentado para aprofundar e saborear a palavra de Deus é a lectio divina, que constitui um verdadeiro e próprio itinerário espiritual por etapas. Da lectio, que consiste em ler e reler um trecho da Sagrada Escritura e em frisar os seus aspectos principais, passa-se à meditatio, que é como que uma pausa interior, em que a alma se dirige a Deus, procurando compreender aquilo que a sua palavra diz hoje à vida concreta. Depois, vem a oratio, que nos faz entreter com Deus um diálogo directo, e enfim chega-se à presença de Cristo, cuja palavra é "luz que brilha num lugar escuro, até que venha o dia em que a estrela da manhã brilhe nos vossos corações" (2 Pd 1, 19). Em seguida, a leitura, o estudo e a meditação da Palavra devem desabrochar numa vida de adesão coerente a Cristo e aos seus ensinamentos.” (Mensagem em 22 de fevereiro de 2006)
A partir dessas linhas-mestras, o Papa sugere um programa muito prático para a valorização desse nexo entre a Sagrada Eucaristia e a ação litúrgica.
Um dos pontos desse programa é a formação dos que fazem leituras na Missa, e a redescoberta e promoção do ministério do leitor.
“Na assembleia sinodal sobre a Eucaristia, já se tinha pedido maior cuidado com a proclamação da Palavra de Deus. Como é sabido, enquanto o Evangelho é proclamado pelo sacerdote ou pelo diácono, a primeira e a segunda leitura na tradição latina são proclamadas pelo leitor encarregado, homem ou mulher. Quero aqui fazer-me eco dos Padres sinodais que sublinharam, também naquela circunstância, a necessidade de cuidar, com uma adequada formação, o exercício da função de leitor na celebração litúrgica e de modo particular o ministério do leitorado que enquanto tal, no rito latino, é ministério laical. É necessário que os leitores encarregados de tal serviço, ainda que não tenham recebido a instituição no mesmo, sejam verdadeiramente idóneos e preparados com empenho. Tal preparação deve ser não apenas bíblica e litúrgica mas também técnica: «A formação bíblica deve levar os leitores a saberem enquadrar as leituras no seu contexto e a identificarem o centro do anúncio revelado à luz da fé. A formação litúrgica deve comunicar aos leitores uma certa facilidade em perceber o sentido e a estrutura da liturgia da Palavra e os motivos da relação entre a liturgia da Palavra e a liturgia eucarística. A preparação técnica deve tornar os leitores cada vez mais idóneos na arte de lerem em público tanto com a simples voz natural, como com a ajuda dos instrumentos modernos de amplificação sonora».” (VD, 58)
A leitura das lições na Missa em rito romano, à exceção do Evangelho, é feita por alguém especialmente encarregado para tal. O Papa trata de sublinhar o necessário preparo técnico, mas também espiritual, de quem faz essas leituras. Não se pode apenas emprestar a voz à Palavra de Deus para fazer uma proclamação litúrgica: é preciso que tal seja fruto da coerência de vida, sem descuidar o aspecto técnico.
Além disso, o Santo Padre, ao prescrever tais conselhos a todos os que fazem leituras, diz que eles são ainda mais importantes quando elas são feitas pelos “leitores instituídos”. O leitorado, bem o sabemos, é um ministério, ou seja, uma tarefa especialmente dada pela autoridade da Igreja a alguém mediante um rito litúrgico específico. Hoje, esse rito, no âmbito da liturgia romana moderna, se chama instituição, mas houve tempo em que se a chamava “ordenação menor”, expressão que é conservada pelos que observam a forma antiga, extraordinária, do rito romano, e pelos inúmeros ritos orientais. Assim, historicamente, esse ministério do leitor era tão importante a ponto de o chamarmos “ordem menor”, em analogia ao sacramento da Ordem.
Se leituras todos podem fazer, homens e mulheres, desde que idôneos e bem preparados, o ministério do leitor, por sua vez, só é concedido aos homens pelo Bispo, nos termos do Direito Canônico.
Urge valorizá-lo. Não conferir tal ministério/ordem menor somente aos seminaristas em preparação ao sacerdócio, mas a varões que tenham o chamado específico. Se em uma Missa “comum”, se possa, sem maiores problemas, treinar um leigo para fazer uma leitura, tem maior peso litúrgico, e é mais conectado com a tradição, que nas Missas mais solenes, a leitura seja feita pelo leitor instituído, i.e., por quem recebeu o ministério do leitorado. Entre um simples fiel que faz uma leitura e um leitor instituído há um abismo enorme a diferenciá-lo, e esse abismo é saudável, encontra eco na tradição litúrgica, e faz a Palavra por ele proclamada ter uma significação litúrgica externa muito mais profunda.
Outro ponto ressaltado pelo Pontífice para enfatizar a posição litúrgica da Palavra de Deus na celebração é a maior popularização do canto por excelência do rito romano, o canto gregoriano. De fato, além de musicar as perícopes bíblicas ou, quando não o faça, se inspirar profundamente nas mesmas, o canto gregoriano, por sua métrica e técnica, subordina a melodia à palavra cantada. O centro, no canto gregoriano, é o que se canta, e não tanto como se canta.
“No âmbito da valorização da Palavra de Deus durante a celebração litúrgica, tenha-se presente também o canto nos momentos previstos pelo próprio rito, favorecendo o canto de clara inspiração bíblica capaz de exprimir a beleza da Palavra divina por meio de um harmonioso acordo entre as palavras e a música. Neste sentido, é bom valorizar aqueles cânticos que a tradição da Igreja nos legou e que respeitam este critério; penso particularmente na importância do canto gregoriano.” (VD, 70)
Falar em canto gregoriano, por sua vez, nos leva a falar no silêncio. O modo de cantar a música oficial da liturgia romana é uma lembrança da importância de silenciar para ouvir a Deus.
Também na liturgia esse silêncio tem seu lugar. Não se adora a Deus apenas falando, cantando, recitando uma oração. Silenciando também prestamos culto ao Senhor, e respondemos ao apelo do que foi lido nas Sagradas Escrituras. Por isso, o silêncio é um ponto muito concreto para valorizar a Palavra de Deus na liturgia.
“Várias intervenções dos Padres sinodais insistiram sobre o valor do silêncio para a recepção da Palavra de Deus na vida dos fiéis. De facto, a palavra pode ser pronunciada e ouvida apenas no silêncio, exterior e interior. O nosso tempo não favorece o recolhimento e, às vezes, fica-se com a impressão de ter medo de se separar, por um só momento, dos instrumentos de comunicação de massa. Por isso, hoje é necessário educar o Povo de Deus para o valor do silêncio. Redescobrir a centralidade da Palavra de Deus na vida da Igreja significa também redescobrir o sentido do recolhimento e da tranquilidade interior. A grande tradição patrística ensina-nos que os mistérios de Cristo estão ligados ao silêncio e só nele é que a Palavra pode encontrar morada em nós, como aconteceu em Maria, mulher indivisivelmente da Palavra e do silêncio. As nossas liturgias devem facilitar esta escuta autêntica: Verbo crescente, verba deficiunt.
Que este valor brilhe particularmente na Liturgia da Palavra, que «deve ser celebrada de modo a favorecer a meditação». O silêncio, quando previsto, deve ser considerado «como parte da celebração». Por isso, exorto os Pastores a estimularem os momentos de recolhimento, nos quais, com a ajuda do Espírito Santo, a Palavra de Deus é acolhida no coração.” (VD, 66)
Ao contrário do que se poderia pensar, mais superficialmente, a promoção da Palavra no culto litúrgico não é feita somente quando se a proclama ou quando se a escuta, mas também quando se a digere e contempla. De nada adianta ouvir a Palavra, sem meditá-la, e só se medita quando se está em silêncio. O silenciar, por alguns instantes, na Missa, não é ocasião de tédio ou vazio, mas de sublime contemplação da Palavra de Deus liturgicamente anunciada.
Enfim, nos números seguintes da Exortação, Bento XVI enumera outras sugestões para que o culto litúrgico demonstre mais claramente sua relação com a Sagrada Escritura: a importância da explicação das leituras por uma atenta homilia (cf. VD, 59); a promoção das Laudes e Vésperas celebradas com o povo nas paróquias (de forma comunitária e, se houver condições, também na forma solene, conforme o Cerimonial dos Bispos, com pluvial, incenso, canto gregoriano; cf. VD, 62); o uso do Evangeliário, conduzido com especial dignidade nas procissões, não só na Missa pontifical, mas em outras Missas mais importantes, especialmente na Missa solene com diácono (cf. VD, 67); e a observação do ambão como um lugar de honra no presbitério, bem como do cuidado com o Lecionário (cf. VD, 57 e 68).
Não pretendemos terminar o presente artigo de forma abrupta. Sem embargo, após explanarmos – certamente sem ambicionar fornecer uma interpretação exaustiva dos trechos sobre liturgia na citada Exortação Apostólica Verbum Domini, antes dando uma pincelada em pontos que julgamos mais relevantes –, após explanarmos, dizíamos, sobre o nexo entre a Sagrada Escritura e o culto público da Igreja, não nos restaria senão recomendarmos a leitura direta do texto do documento, como forma de aproximação com o riquíssimo pensamento litúrgico do Papa Bento XVI. Pensamento, aliás, iniciado já antes, no seu tempo de padre, teólogo, Bispo e Cardeal da Santa Igreja Romana.
Para “salvar” a liturgia diante de tantas sombras e manipulações, fato denunciado por grandes Bispos e por três Papas (Paulo VI, João Paulo II e o próprio Bento XVI), temos que andar no passo da Igreja. No afã de promover um novo movimento litúrgico, que desperte nas almas a busca mais profunda de Deus mediante a oração oficial da Igreja, e uma compreensão das rubricas e dos ritos como instrumentos para a nossa santificação, nada é melhor do que trilhar o caminho que o Sucessor de Pedro nos indica. Responder ao chamado do Papa, obedecer ao que ele manda, e manifestar, assim, nossa mais sincera fidelidade ao seu Magistério, passa por escutar seu apelo em prol da liturgia.
Salvem a Liturgia
sábado, 4 de agosto de 2012
quinta-feira, 2 de agosto de 2012
As Cinco chagas da liturgia
Mons. Athanasius SCHNEIDER
15 de janeiro de 2012
(em “L’Homme Nouveau”, n° 1511 de 11.2.2012)
(traduzido em português de Portugal)
Para falar correctamente da nova evangelização, é indispensável lançar primeiro o nosso olhar sobre Aquele que é o verdadeiro Evangelizador, isto é, Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, o Verbo de Deus feito Homem.
O Filho de Deus veio a esta Terra para espiar e resgatar o maior pecado, o pecado por excelência. E este pecado, por excelência, da humanidade consiste na sua rejeição de adorar a Deus, na sua rejeição de Lhe reservar o primeiro lugar, o lugar de honra. Este pecado dos homens consiste no facto de se não prestar já atenção a Deus, no facto de se não ter já o verdadeiro sentido das coisas, isto é, nos pormenores ou pontos de vista que elevam ou nobilitam Deus e a adoração que Lhe é devida, no facto de se não querer já ver Deus, no facto de se não querer já ajoelhar diante d’Ele.
Perante uma tal atitude, a Incarnação de Deus é incômoda ou embaraçosa, como embaraçosa é também, por conseqüência, a presença real de Jesus no mistério Eucarístico, e embaraçosa é também a centralidade da presença Eucarística de Deus nas igrejas. Com efeito, o homem pecador quer pôr-se no centro, tanto no interior da igreja como na celebração Eucarística: quer ser visto, quer ser notado. E é esta a razão pela qual Jesus Eucaristia, Deus Incarnado, presente no Sacrário sob a forma eucarística, se prefere colocar de lado. A própria representação do Crucificado, na Cruz, ao centro do altar, na celebração virada para o povo é embaraçosa, porque então, o rosto do sacerdote passaria a ficar ocultado. Por conseguinte, a imagem do Crucificado, no centro, tal como Jesus Eucaristia, no Sacrário, igualmente no centro, são embaraçosos ou incômodos.
E deste modo, a Cruz e o Sacrário são pura e simplesmente postos de lado. Durante o Ofício, os assistentes devem poder ver ou observar permanentemente o rosto do sacerdote e este tem todo o prazer em se colocar literalmente no centro da Casa de Deus. E se por acaso Jesus Eucaristia é mantido no seu Sacrário, no centro do altar, porque o Ministério dos Monumentos Nacionais, mesmo sob um regime ateu, proibiu, por razões de simples conservação do patrimônio artístico, deslocá-Lo, o sacerdote, muitas vezes, ao longo de toda a celebração litúrgica, volta-Lhe às costas sem escrúpulo algum.
JESUS NO CENTRO
Quantas vezes, maravilhados, os fiéis adoradores de Cristo, na sua simplicidade e humildade se terão visto a clamar: “Abençoados sejais vós, os Monumentos Nacionais! Vós mesmos, pelo menos, nos tereis deixado Jesus no centro da nossa igreja.”
Só a partir da adoração e da glorificação de Deus e dá Igreja se poderá anunciar, de uma forma adequada, a Palavra da Verdade, isto é, evangelizar. Antes que o mundo ouvisse Jesus, o Verbo eterno feito carne, pregar e anunciar o Reino, Jesus calou-se e adorou durante trinta anos. E isso mesmo fica sendo para sempre a lei da vida e acção da Igreja, assim como a de todos os evangelizadores.
“É na forma de tratar a liturgia que se decide a sorte da fé e da Igreja”, afirmou o Cardeal Ratzinger, nosso actual Santo Padre, o Papa Bento XVI. O Concílio Vaticano II, quis lembrar a Igreja que realidade e acção deveriam tomar o primeiro lugar na sua vida. E foi justamente para isso que o primeiro documento conciliar foi consagrado à Liturgia. A respeito disso, o Concílio dá-nos os seguintes princípios:
Na Igreja, e por conseguinte na Liturgia, o humano se deve ordenar ao divino, o visível ao invisível, a acção à contemplação e o presente à Cidade futura a que todos nós aspiramos (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 2).
Por isso, tudo, na Liturgia da Santa Missa, deve servir para que se exprima da mais nítida forma, a realidade do Sacrifício de Cristo, isto é, as orações de adoração, de acção de graças, de expiação, de petição, que o Eterno Sumo Sacerdote apresentou a Seu Pai.
UM CÍRCULO ABERTO
O rito e todos os pormenores ou detalhes do Santo Sacrifício da Missa devem estar orientados no sentido da glorificação e da adoração de Deus, insistindo-se, sobretudo, na centralidade da Presença de Cristo, quer no sinal e na representação do Crucificado, quer na Presença Eucarística no Sacrário, e sobretudo, no momento da Consagração e da Sagrada Comunhão. Quanto mais isto mesmo for respeitado, tanto menos o homem se coloca no centro da celebração, tanto menos a celebração se assemelha a um círculo fechado, mas sim pelo contrário está aberto, mesmo de uma forma exterior, para Cristo, como numa verdadeira procissão que se dirige para Ele, com o sacerdote à cabeça; e quanto mais uma celebração litúrgica reflectir, de uma forma verdadeira, o sacrifício de adoração de Cristo na cruz, tanto mais ricos serão os frutos que os participantes irão receber na sua alma, que vêm da glorificação de Deus, tanto mais o próprio Deus os honrará.
Quanto mais o sacerdote e os fiéis procurarem em verdade, nas celebrações Eucarísticas, a glória de Deus e não a glória dos homens, e não procurarem receber a glória uns dos outros, tanto mais Deus os honrará, deixando, então, que a sua alma participe, de uma forma bem mais intensa e mais fértil, na glória e na honra de Sua vida divina.
Na hora actual e em diversos lugares da Terra, muitas são as celebrações da Santa Missa, em que se poderia dizer a seu respeito as palavras seguintes, invertendo deste modo as palavras do Salmo 113 B, versículo 1: “A nós, ó Senhor, e a nosso nome, dai glória” e por outro lado, o propósito de tais celebrações se aplicam as palavras de Jesus: “Como podeis acreditar, vós que tirais a glória uns dos outros e não buscais a glória que vem de Deus?” (Jo. 5, 44). O Concílio Vaticano II emitiu, a respeito de uma reforma litúrgica, os princípios seguintes:
1 – O humano, o temporal, a actividade devem, durante a celebração litúrgica, orientar-se pelo divino, pelo eterno, pela contemplação, e ter um papel subordinado, relativamente a estes últimos (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 21).
2 – Durante a celebração litúrgica, dever-se-á encorajar ou estimular a tomada de consciência de que a liturgia terrestre participa da liturgia celeste (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 8).
3 - Não deve haver nela absolutamente nenhuma inovação e, por conseguinte, nenhuma criação nova de ritos litúrgicos, sobretudo no rito da Missa, a não ser que seja para um proveito verdadeiro e certo a favor da Igreja e sob a condição de que se proceda com prudência e de que eventualmente formas novas substituam formas já existentes de maneira orgânica (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 23).
4 – Os ritos da Missa devem ser de tal forma, que o sagrado seja expresso mais explicitamente (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 21) .
5 – O latim deve ser conservado na liturgia, e sobretudo na Santa Missa (cf. Sacrosanctum Concilium, n.os 36 e 54).
6 – O canto gregoriano tem o primeiro lugar na liturgia (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 116).
Os Padres conciliares viam as suas propostas de reforma como a continuação da reforma de São Pio X (cf. Sacrosanctum Concilium, n. os 112 e 117) e do servo de Deus Pio XII, e com efeito, na constituição litúrgica, é a encíclica Mediator Dei do Papa Pio XII que mais é citada.
O Papa Pio XII deixou à Igreja, entre outros, um princípio importante da doutrina sobre a santa liturgia, isto é, a condenação daquilo que se chama o arqueologismo litúrgico, cujas propostas coincidiam largamente com as do sínodo jansenista e protestantizante de Pistóia, de 1786 (cf. Mediator Dei, n. os 63 e 64). E que de facto lembra os pensamentos teológicos de Martinho Lutero.
UM SACRIFÍCIO E NÃO UM BANQUETE
Eis porque já o Concílio de Trento condenou as idéias litúrgicas protestantes, notavelmente a acentuação exagerada da noção de banquete na celebração Eucarística em detrimento do carácter sacrificial, a supressão dos sinais unívocos de sacralidade como expressão do mistério da liturgia (cf. Concílio de Trento, seção XXII).
As declarações litúrgicas doutrinais do magistério, como neste caso do Concílio de Trento e da Encíclica Mediator Dei, que se reflectem numa práxis litúrgica secular, isto é, de mais de um milênio, constante e universal, estas declarações, por conseguinte, fazem parte deste elemento da santa Tradição que se não pode abandonar, sem correr graves riscos no plano espiritual.
Estas declarações doutrinais sobre a liturgia, retomou-as o Vaticano II, como se pode constatar ao ler os princípios do culto divino na constituição litúrgica Sacrosanctum Concilium.
Como erro concreto no pensamento e agir do arqueologismo litúrgico, o Papa Pio XII cita a proposta feita de dar ao altar a forma de uma mesa (cf. Mediator Dei, n. 62). Se já o Papa Pio XII recusava o altar com uma forma de mesa, imagine-se como ele teria a fortiori, com maior força de razão rejeitado a proposta de uma celebração como ao redor de uma mesa “versus populum” (virada para o povo)!
Se o Sacrosanctum Concilium ensina no n. 2 que, na liturgia, a contemplação deve ter a prioridade e que toda a celebração da Santa Missa deve ser orientada para os mistérios celestes (cf. itens n. os 2 e 8), nele se encontra um eco fiel da seguinte declaração do Concílio de Trento que dizia:
“uma vez que a natureza do homem está feita de tal modo, que se não deixa facilmente erguer para a contemplação das coisas divinas sem ajudas exteriores, a Mãe Igreja, na sua benevolência, introduziu ritos preciosos; e recorreu, apoiando-se no ensinamento apostólico e na tradição, as cerimônias tais como bênçãos cheias de mistérios, velas ou círios, incenso, vestes litúrgicas e muitas outras coisas; tudo isso deveria incitar os espíritos dos fiéis, graças a sinais visíveis da religião e da piedade, à contemplação das coisas sublimes.” (Sessão XXII, cap. 5)
Os ensinamentos citados do magistério da Igreja, e sobretudo o da Mediator Dei , foram sem dúvida alguma reconhecidos pelos Padres conciliares como plenamente válidos; por conseguinte, eles mesmos devem continuar hoje ainda a ser plenamente válidos para todos os filhos da Igreja.
Na sua carta dirigida a todos os bispos da Igreja católica, que Bento XVI juntou ao motu próprio Summorum Pontificum de 7 de julho de 2007, o Papa faz esta declaração importante: “Na história da liturgia, há crescimento e progresso, mas não ruptura. Aquilo que foi sagrado para as gerações passadas, deve permanecer sagrado e grande para nós.”
Dizendo isto, o Papa exprime o princípio fundamental da liturgia que o Concílio de Trento, o Papa Pio XII e o Concílio Vaticano II ensinaram.
PRINCÍPIOS NÃO SEGUIDOS
Se olharmos agora, sem preconceitos e de uma forma objectiva, para a prática litúrgica da esmagadora maioria das Igrejas em todo o mundo católico, em que a forma ordinária do rito romano está em uso, com toda a honestidade, ninguém poderá negar que os seis princípios litúrgicos mencionados pelo Concílio Vaticano II não são respeitados ou apenas o serão bem pouco; muito embora se declare, erroneamente, que essa prática da liturgia foi sonhada pelo Vaticano II.
Há um certo número de aspectos concretos, na prática dominante actual, no rito ordinário que representam uma verdadeira ruptura ou contradição com uma prática litúrgica constante, desde há mais de um milênio. Trata-se dos seguintes usos litúrgicos, que bem se poderão designar como sendo AS CINCO CHAGAS DO CORPO MÍSTICO LITÚRGICO DE CRISTO.
Trata-se de chagas, porque elas representam uma violenta ruptura com o passado; porque na realidade elas põem um bem menor acento no carácter sacrificial, que entretanto é extraordinariamente belo e que é justamente o carácter central e essencial da Santa Missa, e sublinham acima de tudo a idéia de banquete. E tudo isso diminui os sinais exteriores da adoração divina, porque põem em muito menor relevo o carácter do mistério, naquilo que ele tem de celeste e eterno.
Quanto às cinco chagas, trata-se daquelas que, com excepção de uma delas (as novas orações do ofertório), não estão previstas na forma ordinária do rito da Santa Missa, mas foram INTRODUZIDAS PELA PRÁTICA DE UM MODO BEM DEPLORÁVEL.
1 – A primeira chaga e a mais evidente é a celebração do Santo Sacrifício da Missa, em que o sacerdote celebra virado para os fiéis, particularmente na Oração Eucarística e na Consagração, o momento mais alto e o mais sagrado da adoração que é devida a Deus. Esta forma ou posição exterior corresponde mais, pela sua natureza, à forma de que se faz uso no momento em que se partilha uma refeição. Estamos, pois, na presença de um círculo fechado. Ora, esta forma, não está de modo algum conforme com o momento da oração, e muito menos ainda com o da adoração. Esta forma, de modo algum foi sequer sonhada ou desejada e jamais foi recomendada pelo magistério dos Papas postconciliares. O Papa Bento XVI escreve, no seu prefácio ao primeiro tomo das suas obras completas:
“A idéia de que o sacerdote e a assembléia devem estar a olhar-se no momento da oração nasceu entre os modernos e é absolutamente estranha à cristandade tradicional. O sacerdote e a assembléia não se dirigem mutuamente uma oração, mas é ao Senhor que ambos se dirigem, eis porque, na oração, eles mesmos devem olhar na mesma direcção: ou para o Oriente, como sendo esta direção o símbolo cósmico do regresso do Senhor, ou então, onde isto não seja possível, para uma imagem de Cristo situada na ábside, para uma cruz ou muito simplesmente para o alto.”
VIRADOS PARA O SENHOR
A forma da celebração em que todos dirigem o seu olhar para a mesma direcção (conversi ad orientem, ad Crucem, ad Dominum – virados para o Oriente, para a Cruz, para o Senhor) é até mesmo evocada pelas rubricas do novo rito da Missa (cf. Ordo Missae, n. 25, nn 133 e 134). A celebração que se chama “versus populum” (virado para o povo) não corresponde evidentemente à dieia da santa liturgia, tal como ela é mencionada nas declarações do documento do Vaticano II (Sacrosanctum Concilium n. 2 e 8).
2 – A segunda chaga é a comunhão na mão, espalhada praticamente em toda a parte, no mundo.
A segunda chaga é a comunhão na mão, espalhada praticamente em toda a parte, no mundo. Não só esta forma de receber a comunhão não foi evocada ou citada de modo algum pelos Padres conciliares do Vaticano II, mas também é tristemente introduzida por um certo número de bispos em claríssima desobediência à Santa Sé, e no desprezo do voto negativo, em 1968, da maioria do corpo episcopal. Só depois o Papa Paulo VI a legitimou sob condições particulares, e bem contra a sua própria vontade.
O Papa Bento XVI, depois da festa do Santíssimo Sacramento de 2008, não mais distribuiu a Comunhão senão a fiéis de joelhos e na língua, exigindo sempre a chamada “mesa da comunhão”, e não apenas em Roma, mas também em todas as igrejas locais que visita. Com esta atitude, ele mesmo dá a toda a Igreja, um claro exemplo do magistério prático em matéria litúrgica. Se a maioria qualificada do corpo episcopal, três anos depois do Concílio, rejeitou ou recusou a Comunhão na mão, como algo de nocivo ou prejudicial, quanto mais os Padres conciliares o teriam igualmente feito!
3 – A terceira Chaga são as novas orações do Ofertório.
Elas são uma criação inteiramente nova e jamais foram usadas na Igreja. Estas orações exprimem muito menos a evocação do mistério do Sacrifício da Cruz, que a de um banquete, que lembra as orações da refeição sabática dos Judeus. Na tradição mais que milenária da Igreja, tanto do Oriente como do Ocidente, as orações do Ofertório tem sempre sido orientadas expressamente no sentido do mistério do Sacrifício da Cruz (cf. p. ex. Paul Tirot, História das orações do ofertório, na liturgia romana, do século VII ao século XVI, Roma, C.L.V., 1985).
Uma tal criação absolutamente nova está sem dúvida alguma em contradição com a formulação bem clara do Vaticano II que lembra: “Finalmente, não se introduzam inovações, a não ser que uma utilidade autêntica e certa da Igreja o exija, e com a preocupação de que as novas formas como que surjam a partir das já existentes” (Sacrosanctum Concilium, n. 23).
4 – A quarta chaga é o desaparecimento total do latim e do canto gregoriano, na imensa maioria das celebrações Eucarísticas de forma ordinária, na totalidade dos países católicos.
Está nisso uma infracção directa contra as decisões do Vaticano II.
5 – A quinta Chaga é o exercício dos serviços litúrgicos de Leitor e de Acólito por mulheres, assim como o exercício destes mesmos serviços em hábito civil, penetrando assim no coro durante a Santa Missa, vindos directamente do espaço reservado aos fiéis.
Este costume jamais existiu na Igreja ou, pelo menos, nunca foi bem-vindo. Um tal costume confere à celebração da Santa Missa católica o carácter exterior de algo informal, o carácter e o estilo de uma assembléia, mais profana que religiosa. O segundo concílio de Niceia já proibia, em 787, tais práticas, editando este cânone: “Se alguém não está ordenado, não lhe é permitido fazer a leitura do ambão, durante a santa liturgia.” (can 14)
Esta norma foi constantemente respeitada na Igreja. Só o subdiáconos ou os leitores tinham o direito de fazer a leitura durante e liturgia da Missa. Em substituição do subdiáconos e leitores ou acólitos que viessem a faltar, só homens ou jovens moços de hábitos litúrgicos as poderiam fazer, e não mulheres, uma vez reconhecido que o sexo masculino, no plano da ordenação não sacramental dos leitores e acólitos representa simbolicamente a última ligação com as ordens menores.
Nos textos do Vaticano II, não é feita de modo algum qualquer menção da supressão das ordens menores e do subdiaconado, nem da introdução de novos ministérios. Na Sacrosanctum Concilium n.28, o Concílio faz a diferença entre minister e fidelis durante a celebração litúrgica e estipula ou determina que um e outro tenham direito de não fazer senão aquilo que lhes compete segundo a natureza da liturgia. O n. 29 menciona os “ministrantes”, isto é, os servos do altar que não receberam nenhuma ordenação. Em oposição a esses “ministrantes”, haveria, segundo os termos jurídicos da época, os “ministros”, isto é, aqueles que receberam uma ordem, quer maior, quer menor.
UM APELO A UM ESPÍRITO MAIS SAGRADO
Pelo motu próprio “Summorum Pontificum”, o Papa Bento XVI estipula ou determina que as duas formas de rito romano são de considerar e de tratar com o mesmo respeito, porque a Igreja continua a ser a mesma antes e depois do Concílio. Na carta que acompanhou o motu próprio, o Papa deseja que as duas formas se enriqueçam mutuamente. Além disso, deseja que na nova forma “se verifique, mais do que tem acontecido até ao presente, o sentido do sagrado, que acaba por atrair muitíssimas pessoas para o rito antigo.”
As quatro chagas litúrgicas ou infelizes práticas (celebração virada para o povo (versus populum), comunhão na mão, abandono total do latim e do canto gregoriano e intervenção das mulheres no serviço da leitura e no de acólitos), não tem em si mesmas nada a ver com a forma ordinária da missa e estão ainda mais em contradição com os princípios litúrgicos do Vaticano II. Se se pusesse termo a estas práticas, voltaríamos ao verdadeiro ensinamento litúrgico do Vaticano II. E nesse momento, as duas formas do rito romano se viriam então a aproximar muitíssimo, de forma que, pelo menos exteriormente, em nada teríamos que reconhecer ruptura alguma entre essas duas formas e, por esse motivo, não haveria ruptura alguma entre a Igreja antes do Concílio e a Igreja depois do mesmo Concílio.
Naquilo que se relaciona com as novas orações do Ofertório, seria desejável que a Santa Sé a substituísse pelas orações correspondentes da forma extraordinária ou, pelo menos, que permitisse a sua utilização ad libtum. E deste modo, seria evitada a ruptura entre as duas formas, não apenas exteriormente, mas também interiormente.
A ruptura na liturgia é justamente aquilo que a maioria dos Padres conciliares jamais quis; e testemunham-no muitíssimo bem as Actas do Concílio, porque nos dois mil anos de história da Liturgia na Santa Igreja, jamais houve ruptura litúrgica e, por conseguinte, jamais a deve haver agora. Pelo contrário, deve haver nela uma continuidade, como convém que o seja para o próprio magistério. As cinco chagas no corpo litúrgico da Igreja aqui evocadas ou indicadas reclamam ou exigem uma verdadeira cura. Elas mesmas representam uma ruptura semelhante à do exílio de Avinhão.
A situação de uma tão nítida ruptura numa expressão da vida da Igreja, que está bem longe de ser sem importância (outrora, a ausência dos papas da cidade de Roma; hoje, a ruptura visível entre a liturgia de antes e de depois do Concílio), e, por conseguinte, esta situação exige cura.
Eis porque se tem hoje necessidade de novos santos, de uma ou de mais Santas Catarinas de Sena(2. Tem-se necessidade da “Vox populi fidelis” (voz do povo fiel) a reclamar a supressão ou desaparecimento desta ruptura litúrgica. Mas o trágico da história é que hoje, como outrora, no tempo do exílio de Avinhão, uma grande maioria do clero, sobretudo do alto clero, se satisfaz com este exílio, com esta ruptura. Antes que se possam esperar frutos eficazes e duradoiros da nova evangelização, é necessário primeiro que se instaure no interior da Igreja um processo de verdadeira conversão. Como poderemos nós chamar ou convidar os outros a converter-se enquanto entre aqueles que fazem este mesmo convite se não realizou ainda nenhuma conversão convincente para Deus, porque, na liturgia, eles mesmos se não viraram suficientemente para Deus, tanto interior como exteriormente? Celebra-se o Santo Sacrifício de Cristo, o maior mistério da fé, o acto de adoração mais sublime, num círculo fechado, olhando-se uns para os outros.
(2) Santa Catarina de Sena foi célebre nas suas famosas e bem determinantes cartas enviadas ao Papa, nesse tempo a viver em Avinhão e não em Roma, declarando-lhe o seu indiscutível dever de viver em Roma e não em Avinhão. Graças a Deus, a biblioteca desta nossa Fraternidade tem a oportunidade de possuir e conhecer muito bem estas famosas cartas e variados escritos espirituais de S. Catarina de Sena. (n.d.t.p.)
A CONVERSÃO PARA DEUS “CONVERSIO AD DOMINUM”
Falta a “Conversio ad Dominum” necessária, mesmo exteriormente, fisicamente. Uma vez que durante a liturgia se trata Cristo como se não fosse Deus, e que se lhe não manifestam sinais exteriores claros de uma adoração devida só a Deus, pelo facto de os fiéis receberem a Sagrada Comunhão de pé e, mais ainda, tomarem a Hóstia Consagrada nas suas mãos, como se tratasse de um ordinário alimento, agarrando-o com os dedos e metendo-o eles mesmos na boca. Há nisto o perigo de uma espécie de arianismo ou de um semiarianismo eucarístico. Uma das condições necessárias de uma frutuosa nova evangelização seria o testemunho seguido por toda a Igreja no plano de culto litúrgico público, que observasse pelo menos estes dois aspectos de culto divino, isto é:
1 – Que em toda a terra, a Santa Missa fosse celebrada mesmo na forma ordinária, com a “Conversio ad Dominum” interiormente e também de um modo necessário exteriormente. Virados para Deus e não para o povo (versus Deum e não versus populum).
2 - E que os fiéis dobrassem o joelho diante de Cristo, no momento da Sagrada Comunhão, como o próprio São Paulo o pede, ao invocar o Nome e a Pessoa de Cristo (Fil. 2, 10); e que os mesmos fiéis O recebessem com o maior amor e o maior respeito possível, como aliás Lhe convém, como verdadeiro Deus que é. Deus seja louvado pelo Papa Bento XVI, que encetou ou iniciou, com duas medidas concretas, o processo do regresso do exílio avinhonês litúrgico (exílio litúrgico de Avinhão), isto é, pelo motu próprio Summorum Pontificum e pela reintrodução do rito da comunhão tradicional (de joelhos e na boca).
Há ainda necessidade de muitas orações e talvez de uma nova Catarina de Sena, a fim de que se realizem todos os outros passos, de forma a curar as cinco chagas do Corpo Litúrgico e Místico da Igreja e que Deus seja venerado na liturgia com esse amor, com esse respeito, com esse sentido do sublime, que foram sempre as características da Igreja e do seu Ensinamento, notavelmente através do Concílio de Trento, do Papa Pio XII, na sua encíclica Mediator Dei, do Concílio Vaticano II, na sua constituição Sacrosanctum Concilium e do Papa Bento XVI, na sua teologia da Liturgia, no seu magistério litúrgico prático e no motu próprio já citado.
Ninguém poderá evangelizar, se não tiver primeiro adorado, e mesmo se não adorar permanentemente e não der a Deus, a Cristo Eucaristia, a verdadeira prioridade, na forma de celebrar e em toda a sua vida. Com efeito, para retomar as palavras do próprio Cardeal Joseph Ratzinger: “É na forma de tratar a liturgia que se decide a sorte ou destino da fé e da Igreja.
*Retirado do blog Encontro com o Bispos (http://www.encontrocomobispo.blogspot.com.br) de S.E.R. Dom Antonio Carlos Rossi Keller, Bispo de Frederico Wesphalen - RS)
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